Matéria sobre a viagem de Pedro Bruno à Itália, como prêmio concedido pelo Conselho Superior de Belas Artes em sua 26ª Exposição eral (Gazeta de Notícias, 1919)
“UMA EXPOSIÇÃO HARMONIOSA”, Edith Magarinos Torres
“Estive, ontem, novamente, na Casa do Rio Grande do Sul, onde ora se apresenta a grande exposição Pedro Bruno.
Lá se encontravam, na ocasião, dois artistas que faziam o mesmo – voltavam atraídos pelo encanto da primeira visita, para completá-la.
– É raro ver-se, ultimamente no Rio, uma exposição tão equilibrada, tão harmoniosa – disse-nos um deles.
– Tive, ao chegar, ontem, aqui, completou o outro, a impressão singular de sentir-me num salão de museu da Europa.
Não quer isso, no entanto, significar que Pedro Bruno seja um passadista, ou tenha estacionado, ou repila, propositadamente o modernismo.
Continua a produzir com o entusiasmo jovial e moço de vinte anos passados, quando, graças a merecido e disputado prêmio, esteve na Europa, onde viu quanto lhe foi possível, aproximando-se dos melhores mestres.
Tem-se conservado romântico, apesar das correntes modernistas, reformadoras. Para ele, o mundo é a ilha maravilhosa, onde se isolou para viver o seu sonho de artista, ávido das emoções puras que só a natureza proporciona. E, para viver no ambiente familiar, onde a beleza viçou – como o demonstra com o admirável retrato de Magda, sua filha… Esse retrato que mais parece, na graça simples, uma reprodução da figura romântica, criada pela imaginação de um dos nossos maiores precursores do romance fino, para moças.
Refiro-me à “Moreninha”, de Macedo, à “Moreninha” cujo espirito deve pairar ainda na ilha de Paquetá, onde J. M. de Macedo a viu, na viveza de uns quinze anos feitos de naturalidade, travessa, a brincar de – esconde esconde, pregando peças a Felippe, ou a cantar sobre a pedra beijada pelas vagas, a balada de amor, que fazia milagres…
Insulado em Paquetá, Pedro Bruno, puro esteta que é, zelando pelas belezas naturais da ilha e pelos aperfeiçoamentos que lhe tem dado, com o viver sadio no convívio das árvores, dos pássaros, do mar caprichoso, dos pescadores, teve uma suprema recompensa – alheiar-se do mundo com tudo quanto tem de mesquinho, deprimente.
Trabalhando sempre, evoluiu, aprimorou sua técnica a ponto de torná-la pessoal, única.
Cheio de risonha complacência, aprecia os modernistas, achando graça em quanto realizam de mais – picassiano…
Como demonstração dessa faculdade de tolerância, figura na exposição um quadro, que tem despertado hilaridade e será para quem o adquirir uma nota encantadora de “verve”. Chama-se “Protesto” e representa a retirada de um “chantecler”, único de um terreiro…
O quadro a que me refiro é também único no gênero na exposição Pedro Bruno. Forma contraste violento com o misticismo de “Angelus no mar”, “Madona das gaivotas”, “Bruma”, “Beethoven e a sonata ao luar”, com a musicalidade wagneriana de “Guanabarinas”, “Rosa”, sonho impreciso que lembra a “rosa, rosa de amor” do poeta santista; dos flamboyants (e ele tem o privilégio dos flamboyants…) árvores que são momentos de várias fases de floração…
Não menciono, aqui, todos os quadros que mais agradam. São todos magníficos e foram selecionados de uma coleção maravilhosa. Teria, se quisesse dar notícia completa, de referir ainda a “Outono”, já premiado no Rio Grande do Sul e num concurso aqui no Rio, quadro que é um puro Parreiras, uma obra-prima.
Deixo de salientar a interpretação que dá ao nu, através do simbolismo, que é como uma visão antiga, puramente acadêmica.
Apreciando Pedro Bruno sob esse aspecto, no gosto pelo simbolismo, na busca do ideal, um dos nossos pintores mais exigentes, que já figurou como membro de concursos, esteve longo tempo na Europa, comparou-o a Puvis de Chavannes…
Que mais dizer, portanto, a respeito dos quadros em exposição, neste momento?
É indiscutível que Pedro Bruno conseguiu pôr em prática a famosa máxima de Corôt: “Na carreira do artista tudo está na conciência, confiança no valor próprio, perseverança”.
Ele tem, como dizia, uma grande conciência artística, movendo-se num sonho de beleza, de que fixa, sutilmente, todos os segredos. Persevera, aplicando-se horas a fio, com uma prodigiosa e rara faculdade de trabalho.
Há, a propósito, em: “Obras-primas de grandes mestres”, de Moreau Vauthier, algumas palavras que explicam melhor o meu ponto de vista.
“Conciência e Fé são as duas Musas que assistem os Mestres na criação de obras-primas.
O que será a fé? É o temperamento do artista, é o seu ponto de vista, sua educação, o meio em que vive.
O artista pode ser místico ou realista, heróico, familiar, poeta ou observador; poderá ser colorista, desenhista, criar um mundo de semi-deuses ou fazer naturezas mortas. Poderá ser Rafael ou Ticiano, Ingres ou Delacroix, Miguel Ângelo ou Chardin…
As qualidades indispensaveis, que deverá aliar aos dons recebidos da natureza, por mais prodigiosos que sejam esses dons, ou por mais maravilhosos que sejam a sua facilidade, seu gênio, são: vontade, esforço, trabalho.”
Nas exposições teem os artistas oportunidades para observações muito úteis.
Entre essas observações avultam vantagens – verem amigos perdidos de vista, desde muito; apreciarem a solidariedade de companheiros de trabalho, o gosto do público. E, o que é muito mais ainda – ajuizarem o caminho percorrido e o que pode ser feito…
O público, composto de leigos e de iniciados, pode ter desorientação, ao julgar, ao adquirir. Mas, muita vez, guiado pelo sexto sentido da cultura, proporciona ao artista uma enorme surpresa – preferenciando, justamente, o trabalho mais fino e de aparência menos vistosa.
Na exposição Pedro Bruno as aquisições, pelo que observei, estão tomando essa orientação.
No momento em que concluo esta croniqueta soube por uma das mais brilhantes discípulas do artista, que o quadro “Protesto” acabava de ser adquirido, sendo notável o apreço demonstrado pelo público em prestigiar a exposição.
Oxalá se multipliquem as aquisições, animadoramente, como tem ocorrido nestes últimos tempos, com o caso de ficarem artistas sem um só quadro para futuras exposições…
É preciso que o público compreenda que o artista também está sujeito à crise econômica e sofre com os preços fantásticos a que chegaram as tintas, as telas e… as famosas molduras, que desejaríamos sempre bem ricas…
Quadros como estes que Pedro Bruno está expondo são como aqueles que o “pintor místico” da Baía nos mostrou, há pouco… São obras-primas para galerias de arte, obras-primas de um valor que o tempo tornará simplesmente – inestimavel”.
“UM GRANDE ARTISTA MORTO”, Padre Artur Costa
“Conheci PEDRO BRUNO em 1947, numa viagem de barca para Paquetá, onde residia o artista.
A apresentação foi feita por um amigo comum, o poeta e cronista Valdomiro Ferreira, também morador da ilha.
Conservo ainda hoje a impressão de simpatia e encantamento que radiava, ao primeiro contato, da pessoa do grande pintor. A sua extrema simplicidade e modéstia contrastavam com o prestígio de um nome justamente consagrado na Arte nacional.
Pedro Bruno falou-me quase exclusivamente dos encantos naturais da ilha, que ele amava com um enternecido fervor.
Os seus olhos se fechavam as vezes numa expressão de cansaço. Seriam talvez os primeiros indícios da moléstia que lhe minava já o organismo aparentemente robusto. Ou quem sabe se nêsses breves instantes de recolhimento interior, o artista não estaria evocando alguma visão de luz, de côres, de novos motivos que a beleza maravilhosa de Paquetá sugeria constantemente ao seu pincel?
Os quadros não me eram estranhos. Eu vira na igreja de São Roque, a tela magnífica em que o artista revelou a sua inspiração cristã, ao reproduzir em traços de uma inconfundível pureza espiritual, a imagem do santo padroeiro da ilha.
Pedro Bruno viveu para a sua arte, indiferente e refratário aos sucessos mundanos, dos quais sempre fugiu, com desprezo, para refugiar-se em sua velha casa de Paquetá, ou no pequeno “atelier” desta cidade onde trabalhou e morreu.
Era uma espécie de asceta a quem nunca fascinaram os requintes da vida moderna, nem as seduções da glória humana.
Esta veio ao seu encontro ainda quando muito jovem, lhe foi conferido pelo Salão Nacional o prêmio de viagem à Europa, em 1918.
O moço pintor concorrera aquele certame artístico com uma tela de grandes proporções intitulada “A Bandeira Brasileira” e que é considerada no gênero o melhor trabalho até hoje executado no Brasil.
Inúmeras foram as produções em que deixou a marca de sua capacidade técnica e do seu gênio criador de artista.
Era um espirito contemplativo e apaixonado da natureza, um romantico de imaginação sadia, que se afastou deliberadamente de todos os excessos ou abusos das escolas sensualistas. Não desonrou a Arte, transformando-a em instrumento de paixões grosseiras. Os nus femininos que pintou, observa com razão um dos seus críticos, tiveram sempre a nobreza que lhes soube emprestar o caráter do artista.
Assisti em Paquetá a última homenagem que se prestou em vida a Pedro Bruno. Foi a inauguração do busto do artista na praça que hoje tem o seu nome.
Representantes dos poderes públicos, membros do clero, autoridades civis e militares, deputados, diretores de institutos de arte, estavam ali confundidos com o povo naquela consagração pública do artista.
Depois do último discurso, Pedro Bruno levantou-se para agradecer. A emoção quase não o deixou falar. Lembro-me de como recordou um episódio de sua vida íntima que comoveu profundamente a enorme assistência.
Fora ao terminar a guerra de 14 a 18, contou ele. Sua velha mãe voltara da Europa, ainda sob a impressão da medonha tragédia que ensanguentara o mundo. Entrando na casa do filho, em Paquetá, se ajoelhara e beijara o chão!
Queria significar com esse gesto o seu amor a terra formosa e acolhedora que a recebia na paz abençoada do seu céu azul e de suas águas tranquilas.
Depois de uma pausa, em que a emoção lhe embargara a voz, Pedro Bruno continuou dizendo que a sua alma também estava de joelhos, naquela hora, para agradecer a homenagem dos seus patrícios na terra que recebera o beijo de sua mãe.
Nessa eloquência vinda de coração e que se exprimia com acentos, de uma tão comovedora ternura, revelava-se toda a delicadeza e sensibilidade da alma do artista.
Esse foi o homem que o Brasil acaba de perder, e cuja morte representa para a Arte nacional um rude e doloroso golpe”.